Uma vida sem desafios não vale a pena ser vivida. Sócrates

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Os olhos de Camila "Rubem Alves"

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O tempo opera cruéis transformações sobre o corpo. Um dos livros mais sábios jamais escritos, o Tão Te Ching, assim as descreve: “Um homem, ao nascer, é macio e frágil. Ao morrer, ele é duro e rígido. As plantas verdes são macias e cheias de seiva. Na sua morte, elas estão murchas e secas. Portanto, o rígido e o que não se curva são discípulos de vida”.
Esse processo inexorável de endurecimento manifesta-se primeiramente nos olhos. A morte tem especial predileção pelo olhar. Bachelard sabia disso e se perguntava:
“Sim, a luz de um olhar, para onde ela vai quando a morte coloca seu dedo frio sobre os olhos de um morto?”.
É nos olhos que ela injeta o seu sêmen…
Escher. Não sei se esse nome lhe é familiar. É melhor que seja porque, no dia do Juízo Final, Deus vai lhe perguntar sobre ele, e não vai gostar se você disser que
nunca ouviu esse nome. Assim, trate de conhecê-lo antes de morrer.
Os desenhos de Escher se encontram em qualquer livraria boa. Não são baratos. Se forem caros demais, veja na livraria mesmo. Freqüentar livrarias para brincar de
ver figuras e ler é uma felicidade gratuita. Já passou pela sua cabeça que livrarias são playcenters? Brincam as ideias com as palavras, brincam os olhos com as imagens, brinca o nariz com os cheiros cheios de memórias que moram nos livros, brinca o tato, os dedos acariciando o papel liso como se fosse a pele do corpo amado…
Mas, se você tem o dinheiro, vale a pena comprar. Você gastou dinheiro comprando óculos para ver melhor. Gaste dinheiro agora dando aos seus olhos o que ver. Caso contrário, você será como o tolo que compra panelas e não compra comida. As gravuras de Escher são comida para os olhos: fazem mais bem aos olhos do que os melhores colírios…
Os desenhos de Escher são koans, desafios ao olhar, terremoto da inteligência. Uma das suas gravuras mais terríveis tem o nome de Olho: é só um olho e, dentro dele, refletida, a imagem da morte.
Comparando o dito de Tão Te Cbing com a gravura de Escher, concluo que aquele é um olho adulto, pois é no corpo endurecido de adultos que a morte mora.
O remédio, segundo o mesmo livro, é tornarmo-nos “de novo como crianças pequenas”. Se isso lhe acontecer, você não voltará a ser criança pequena de novo, como pensou o tolo Nicodemus quando Jesus lhe disse a mesma coisa; você ficará como criança pequena. Ficar como criança pequena é ficar sábio. Diz o Tão Te Ching que o segredo do sábio – a razão por que todos olham para ele e o escutam – é que “ele se comporta como uma criança pequena”. O sábio é um adulto com olhos de criança. Os olhos,diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade mágica de rejuvenescimento.
Sua cabeça de cientista provavelmente discordará. Você dirá que somente os adultos vêem direito. Os adultos passaram muitos anos nas escolas, seus olhos fizeram caminhadas infinitas pelos livros. Os seus olhos sabem muito, estão cheios. Por isso, devem ver melhor.
Mas esse é, precisamente, o problema. Quando um balde está cheio de água, não é possível colocar mais água dentro dele. Os olhos dos adultos são como balde cheio, como um espelho no qual se colou uma infinidade de adesivos coloridos. O quadro ficou bonito. Mas o espelho se foi. O espelho parou de ver. Ficou cego.
Os olhos das crianças são baldes vazios. Vazios de saber. Prontos para ver. Querem ter tudo. Tudo cabe dentro deles. Minhocas, sementinhas, bichinhos, figuras, colheres, pentes, folhas, bolinhas, colares, botões. Os olhos de Camila, minha neta, se encantam com as coisas. Para eles, tudo é fantástico, espantoso, maravilhoso, incrível, assombroso.
Os olhos das crianças gozam da capacidade de ter o “pasmo essencial” do recém-nascido que abre seus olhos pela primeira vez. A cada momento eles se sentem nascidos de novo para a eterna novidade do mundo.
Walt Whitman diz que, ao começar os seus estudos, o que mais o agradou foi o dom de ver. Ficava encantado com as formas infinitas das coisas, com os mais pequenos insetos ou animais: “[o passo inicial] me assustou tanto, e me agradou tanto, que não foi fácil para mim passar, e não foi fácil seguir adiante, pois eu teria querido ficar ali flanando o tempo todo, cantando aquilo em cânticos extasiados”.
Os olhos dos adultos, havendo se enchido de saber, e havendo, portanto, perdido a capacidade de ver das crianças, olham sem nada ver (daí o seu tédio crônico) e ficam procurando cura para sua monotonia de ver em experiências místicas esquisitas, em visões de outros mundos, ou em experiências psicodélicas multicoloridas.
Pois eu lhe garanto que não existe visão de outro mundo que se compare, em beleza, à asa de uma borboleta. Quem o disse foi Cecília Meireles, poetisa. Os poetas são religiosos que não necessitam de religião porque os assombros deste mundo maravilhoso lhes são suficientes. Foi assim que ela pintou a cosmologia poética que seus olhos viam:
No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um canteiro-, e no canteiro, uma violeta,
e sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.

“Um homem, ao nascer, é macio e frágil. Ao morrer, ele é duro e rígido.”
O que o sábio chinês disse ao corpo inteiro, o poeta espanhol Antônio Machado disse aos olhos:
Olhos que para a luz se abriram
um dia para, depois,
cegos retornar a terra,
fartos de olhar sem ver!

O Monge e o Escorpião


Henry Nouwen conta uma história de um velho que costumava meditar bem cedo, a cada manhã, aos pés de uma enorme árvore na margem do rio Ganges. Numa manhã, depois de ter terminado sua meditação, o velho abriu os olhos e viu um escorpião flutuando sem defesa sobre a água. O homem então, tentou salvar o escorpião, estirando seu braço para a beira do rio próximo à árvore. Quando tocou o escorpião, este o picou. Por instinto o homem recolheu a mão. Alguns segundos mais tarde o homem tenta novamente estirar sua mão sobre as raízes da árvore submersas e salvar o pobre selvagem animal. Desta vez o escorpião picou muito gravemente a mão do homem, a ponto que o veneno deixasse sua mão inchada e cheia de sangue, e seu rosto contorcido de dor.
Naquele momento passou um viajante, e viu o velho estirado de dor, lutando contra o escorpião e gritou:
- Ei, velho, o que há de errado com você? Só um idiota arriscaria a vida por uma criatura tão feia e maligna. Você não sabe que pode se matar tentando salvar esse escorpião ingrato?
O velho virou a cabeça, e olhando nos olhos do viajante, disse calmamente:
- Meu amigos, só porque é da natureza do escorpião picar, isso não muda a minha natureza de salvar.